sexta-feira, 26 de março de 2010

O fardo do mundo

Nu,
No meu quarto sofro a dor da terra,
Espezinhada por mais de mil milhões de homens,
Arrebatando a si a força de viver,
Sem dó, sem piedade,
Alastrando o vírus de uma sida universal,
Arrebatando a si a força da morte,
Que virá bater à porta de todos!

Gozando agora o privilegio que mais tarde
A terra tratará de nos retirar,
Por egoísmo nosso, por nossa culpa,
Por minha culpa,
Carrego aos ombros um fardo pra burro!

Um fardo do tamanho do mundo,
Que me há de pesar a vida toda,
Que me há de ver viver,
Marreco,
Até aos fins dos meus dias,
E a comichão que me faz a palha nas costas?!


Sinto a culpa, em mim,
Pela morte dos judeus,
Dos quais sou sangue também,
Dos escravos dos campos,
Do Louisiana,
Do algodão doce, amargo,
Que como nas feiras de ciganos e circenses,
Das pulseiras,
Compradas no Martim Moniz,
Que queimam o meu pulso,
Nu,
Sinto a dor da classe media,
Do casa trabalho e do trabalho casa,
Da falta da educação das crianças,
A ausência dos pais,
Sinto-o... porque o sou!
Sou um pobre,
Com aspirações à grandeza,
À salvação de uma humanidade,
Da qual, sou herdeiro de um fardo,
Gigantesco,
Maior que as aventuras dos pobres,
Lusitanos, sem pão,
Obrigados a voltar-se pró mar,
Também ele, vendido aos espanhóis,
Também ele poluído por esgotos,
De uma humanidade, cada vez mais,
Cada vez mais,
Vírus…

Com o ouvido atento,
À guitarra das paredes,
Sinto o fado em mim,
Não choro!
Assumo o peso nos ombros dos jovens do mundo inteiro,
Herdando uma herança, feia,
Mas com a qual os nossos pais sonharam,
Embeleza-la!

Oh! Está cada vez mais pesado,
Como está,
Cada vez mais pesado!
E a comichão que me faz a palha nas costas?!

Sem comentários:

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação.”

Debord, G., 1967, A Sociedade do Espectáculo